quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Última Paragem: Dor


Vou na 1ª carruagem, junto à porta do maquinista. O dia foi comprido e agora que toda a gente saiu, posso relaxar e deixar o comboio ir em linha recta sem preocupação. É crime? Talvez seja tanto crime como eu cortar uma árvore no meio da Amazónia: só é se alguém vir.

Eu nem sei que horas são mas sei que as luzes lá fora são esporádicas e eu desliguei as luzes de dentro para estar no escuro, para me moldar ao que há em meu redor e o meu redor me absorver e aceitar como mais uma mancha escura num quadro preto.

Não faço questões de abrandar a locomotiva. Sei que a esta hora pouca gente me ouvirá chegar e ninguém me verá a partir. Deixei a porta da frente trancada e a chave do lado de dentro. Apenas vou deitado no chão em movimento sabendo que a qualquer momento irei entrar na estação final e chocar contra a barreira e continuar. Não espero sobreviver, espero que me doa e bem. 

Mas até lá a viagem vai serena, calma e até satisfatória. Será assim que somos transformados quando nada mais damos ou recebemos? 
Em breve irei descobrir mas irei fechar os olhos.

Podia saltar do comboio, uma vez que estou atravessando zonas de lagos e ficava bem. Podia partir o vidro da porta da locomotiva com o extintor mas não quero apagar nada. Não quero apagar o que sinto por ti.

E por sentir o que sinto, deixo-me ir, levantando-me aos poucos, respirando fundo de pulmões bem cheios de ar e fumo do transporte.

Já começo a ver as luzes ao fundo a serem mais contantes. Já vejo que está a chegar a hora de descarrilar. Acabo por me meter em pé e meto ao bolso. Pego no teu maço de tabaco e tiro um cigarro e coloco o maço de volta ao bolso, substituindo-o por um isqueiro também teu. Tu deves ter dado pela falta mas não me questionaste se os tinha.

Nunca fumei e decidi ter uma parte de ti na hora do meu fim. Levo o cigarro à boca e acendo o isqueiro. Inspirto fundo e liberto o fumo. Acabo por tossir e dizer algumas asneiras. Nunca fumei e já me lembro porquê. Odeio o sabor, o fumo, a vontade de me vomitar todo por sentir os meus pulmões a tentarem trabalhar. 

Decido  pegar no isqueiro e atear alguns assentos e cortinados. Não demora muito até a carruagem estar a arder e a se desfazer. Agora sim, consigo fumar melhor. O gosto e fumo do cigarro é mais agradável que o cheiro a fumo de metal e ferro queimado.

Já falta pouco, penso eu enquanto o comboio continua a ir rápido e comeca a oscilar com as curvas e a querer levantar da linha. Mas tenho fé. Fé que tudo vai correr bem. Que a fé me move neste momento e não apenas o comboio em si. Já vejo as plataformas. Deixo o cigarro ir ao chão e piso-o. Não faz diferença para uma carruagem a arder mas para mim estou-me a despedir de ti. 

Não foste um degrau na minha vida mas sim quem me elevou mais. E tive de não ter resultado. Por isso, nestes últimos segundos, enquanto a minha farda começa a arder, eu respiro fundo, elevo os braços em aceitação e me despeço de ti. Porque como não me aceitaste, não interviste, não procuraste, sei que a barreira pouco me fará de bem. Adeu...

Sem comentários:

Enviar um comentário