segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Santo Sacrifício

Para quem não bebe quase álcool nenhum, este novo ano de 2020 começou com essa mudança.
Sommersby, Virgin Cuba Libre, Bandida do Pomar, ah a minha cidra, o meu veneno novo de eleição, os tempos perdidos que podíamos ter passado juntos mais cedo.


Mas estava ocupado. Ocupado a ser feliz. Ocupado rodeado das pessoas que me querem bem e me querem ver suceder na vida.
Mas o que acontece quando rodamos, sorrimos e vemos as pessoas quebrarem-se aos pedacinhos? Quando elas parecem-se com castelos de cartas ou mesmo legos e vão caindo peça a peça e não os consigo impedir de cair, apenas acelero o processo sempre que me aproximo?


Então viro-me para o que sei. Para a música. Mas magoa. Parece uma droga que começa leve e vai invadindo o sangue e a mente. Quando me envenena de tal forma que só faz sentido ouvir músicas românticas tristes de garrafa na mão, de luz apagada, janela aberta, sentado no chão, atirando a luz da Lua para o corredor escuro da noite. De porta aberta, esperando que venha de lá o meu demónio e me engula de uma vez por todas.

Espero. Vem de uma vez por todas. O telemóvel apita. Espreito. Bateria Fraca. Não estamos todos fracos? Com a nossa própria bateria fraca? A mente não nos começa a pregar partidas? Ouve-se portas gemendo e abrindo ao fim do corredor mas não se percebe movimento. Atiro uma garrafa e falho, parte-se na parede ao lado da porta. Parte do líquido encontra parte de mim. A pele absorve. O músculo fica dormente. O osso desfaz-se e não me sei levantar. 

Oiço movimento. Atiro outra garrafa. Pelo corredor escuro. Não a oiço partir. Talvez esteja ficando surdo. Não tenho nada que possa ter amparado a queda e abafado o som. Vejo o corredor devolvendo a garrafa, vazia, rebolando em direcção a mim e parando, com o gargalo apontando para mim, ainda escorrendo gotas, uma a uma, tal e qual relógio de areia.

Olho em frente. Dois olhos vermelhos se formam à entrada do meu quarto. Sinto-me preso. Reparo que estou algemado com correntes, afastando os meus braços de mim. Os pés atados com cordel um ao outro. Não me consigo mexer. Sinto uma respiração ofegante e queda de baba? Será o momento? Será o meu momento?

A dúvida instala-se. O quarto gela. E aproxima-se uma figura humanóide. Ela baixa-se e atira-me algo pelo chão. A Lua parece mover-se tal como holofote e segue o seu trajecto. É um vestido branco, manchado de sangue a escorrer e de preto, como estivesse a acabar de arder. A figura puxa o que resta do vestido e atira pela janela fora. A janela fecha-se sonoramente, a porta tranca-se sozinha. Está tudo tão escuro. Apenas os buracos das persianas formam um padrão com a luz lunar no chão. 


Oiço um sim fugido... Olho em frente, vejo de repente os mesmos olhos a descerem ao chão e a rastejarem perante mim. Devagarinho, aos zigue zagues. De repente vai para debaixo da cama. Sinto tudo silencioso. Sinto dores fortes no meu ombro esquerdo. Eu olho e é uma cobra de olhos dourados a fincar os dentes. Não consigo mexer o braço, não o sinto.

Olho para a minha direita e o rato de computador ganha vida e se transforma noutra cobra de olhos azul e verde. Estou fixo, não consigo evitar o olhar preso nela e ela desce-me pelo braço e me morde o pescoço. Tento gritar mas nada me sai. As cobras apertam e me forçam a rodar a cara na direcção do corredor. Aqueles olhos vermelhos me espreitam do canto da porta e voltam a rastejar na minha direcção. Oiço a pele viscosa a deslocar-se.

Consegue chegar aonde a luz toca vejo pele...? Chega aos meus joelhos e vai se aproximando do meu peito. Vai subindo e me sinto a agarrar-me pelos tomates. Uivo de dor e abro os olhos. Meia cara dela tapada. Vejo uma serpente de olhos vermelhos.
Vais sucumbir e aqui vou estar para te ter. Como está previsto e como eu mando. Vais cair nos meus braços. Diz a cobra isso enquanto saliva aquela língua. Aproxima-se do meu ouvido e vejo a outra parte da cara e vejo a ti. Mordes-me a orelha e a puxas com força. Sinto-a a rasgar e sinto o sangue a esguichar. Afastas-te até estares olhos nos olhos e estás totalmente humana.
Voltamos ao Passado? Ou tenho de descer e arrancar mais um pedaço de ti, exactamente aqui?



As tuas unhas enormes rasgam parte do meu peito e tu mordes parte do meu coração. A dor é enorme mas tu trazes os teus lábios aos meus  e me dás a provar o meu próprio sangue. Atiras as cobras para longe e arrancas as correntes com um estalar de dentes.
Inclinas a cabeça para o lado. Morde-me e bebe e seremos um só e sairemos daqui para um mundo só nosso. Não quero. Não consigo resistir. Quero saltar janela fora mas só consigo estar imóvel. Tu vais te aproximando e me desabotoando o que me resta da camisa. O buraco no peito está lá. Passas o teu cabelo e o buraco gela e fecha.

Sinto-me frio. Sinto-me rijo. Sinto-me... Não, não me sinto. Não, não sinto. Nada. Só vejo. Só vejo a luxúria do teu olhar e o sangue da tua boca que me atrai. Quero me libertar e não consigo. Deixa-me ir. Deixa-me. DEIXA-ME!

Sem comentários:

Enviar um comentário